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A pandemia do novo coronavírus mudou o cenário mundial em muitos aspectos, mas, sem dúvida, os serviços de Saúde são agora os ambientes mais afetados e pressionados. Nesta série que começamos a publicar hoje, conversamos com os profissionais que atendem ou apoiam o atendimento a pacientes da COVID-19 para conhecer suas novas e tensas rotinas, suas expectativas e receios. Acompanhe essas histórias para entender melhor pelo que a humanidade passa atualmente.

 

“Nossa atuação é importantíssima na promoção do uso racional de medicamentos e materiais hospitalares”

Jessé Eduardo Bispo é docente na Escola de Educação Permanente (EEP), onde coordena o Curso Técnico em Farmácia. Ele também trabalha como farmacêutico clínico de um hospital privado, onde agora atua diretamente com equipe envolvida no tratamento de COVID-19 e também com os pacientes.

A rotina e as tarefas da equipe da Farmácia em um hospital nem sempre são muito conhecidas. Jessé explica que o envolvimento é grande, tanto com os funcionários quanto com os pacientes.

É a equipe de Farmácia que fornece todos os EPIs para os funcionários e pacientes. “Para nós, está sendo um aprendizado bem diferente. Em relação à rotina, a necessidade de usar racionalmente medicamentos e materiais mudou nossa forma de atuar: temos que praticamente prever o número de pacientes para conseguir prover EPIs e medicamentos a todos”, explica.

A busca, mais do que nunca, é pelo mínimo desperdício, e ele explica que o fato de muitos materiais serem importados é uma novidade para a equipe, além de ser outro grande desafio – não pode haver mau uso por falta de treinamento ou conhecimento.

De modo geral, a rotina ficou bem mais exaustiva, e exige muito mais, porque não há possibilidade de faltar material. “Também, pacientes inseridos em protocolo de pesquisa não podem ficar sem avaliação diária do Farmacêutico Clínico”, diz.

Ele afirma que muitos acham que a Farmácia é só um estoque que fica no subsolo, mas que as pessoas em geral nem sabem que é ela quem fornece todo tipo de medicamento, dietas industrializadas e materiais, além de dar suporte à equipe multidisciplinar.

“Também, nós, farmacêuticos, não estamos fazendo somente a parte de farmácia clínica nesse momento. Quando é preciso, trabalhamos na dispensação e entrega dos medicamentos à enfermagem, também no almoxarifado, recebendo insumos, carregando caixas, organizando os espaços para guardar o material que passa a chegar em maior quantidade, algo que não tínhamos antes”, diz.

 

Farmácia Clínica

Quando o paciente está internado com suspeita ou já positivo para COVID-19, a Farmácia Clínica passa a acompanhar parâmetros bioquímicos e fisiológicos dos pacientes, avaliando resultados de exames clínicos – laboratoriais e monitoramento de níveis terapêuticos de medicamentos, para fins de acompanhamento da farmacoterapia e rastreamento em saúde. Quando o paciente já apresenta outras comorbidades, o olhar da equipe deve ser ainda mais amplo: “Ele vai ser tratado da COVID-19, mas não posso deixar de lado a diabetes, as doenças cardiovasculares, depressão ou outras questões. Fazemos uma avaliação clínica do farmacêutica, e nela realizamos, entre outras intervenções, a conciliação medicamentosa – seja porque o médico prescreveu novos medicamentos agora, seja porque o paciente já os tomava em casa”, explica.

A atuação da Farmácia é intensa com as demais equipes, para que se torne um atendimento multidisciplinar de fato: “Naturalmente, conhecemos muito o papel do médico e do enfermeiro, mas as pessoas não imaginam a importância que tem um fonoaudiólogo, por exemplo, pela necessidade de acompanhamento de pacientes livres da respiração mecânica, extubados – onde necessitam de manejo da disfagia e redução do risco de broncoaspiração.

O farmacêutico tem também grande importância na dispensação de dietas industrializadas, pois ela é disponibilizada pela Farmácia, e há as específicas padronizadas de acordo com cada necessidade do paciente. “Com a equipe multidisciplinar, avaliamos o prontuário desse paciente, as prescrições, exames laboratoriais, antibióticos que precisam de ajustes de dose para a função renal, então é um cuidado enorme”, pontua.

Jessé reforça que nada seria possível na luta contra a COVID-19 sem a ajuda dos técnicos de farmácia, que dão total apoio para os farmacêuticos para que os medicamentos cheguem na hora certa aos pacientes certos, “uma grande ajuda para cumprirmos com nossas responsabilidades; eles são muito solidários com a situação”.

Os farmacêuticos também monitoram a pós-alta hospitalar, pois, como não sabem se há imunidade para a doença, é preciso acompanhar os sintomas daquele paciente e se certificar de que os sintomas diminuíram.

“Tudo o que fazemos é anotado no prontuário do paciente, sua evolução farmacêutica, intervenção com os médicos, a conciliação medicamentosa, se houve reação adversa a algum medicamento, tudo é registrado”, conclui.

 

Hidroxicloroquina e a pressão das famílias

O paciente em tratamento traz outro ponto de tensão, não à toa: os familiares. “Diante de tanta coisa publicada sobre remédios e drogas que podem ou não ajudar, as famílias questionam bastante o uso do medicamento. Ainda que a hidoxicloroquina e os antivirais não sejam medicamentos novos, a relação deles com a doença é nova, porque é uma doença que não conhecemos ainda. Precisamos de estudos”, ressalta.

Por outro lado, ele entende a apreensão geral pela COVID-19, sobretudo pelo fato de que a mídia tende a apresentar reportagens sugerindo ou condenando seu uso – depende de sua linha editorial. “Eu fico confuso ao assistir ao noticiário, imagino quem é leigo no assunto”, diz.

Jessé explica que, com o uso de hidroxicloroquina, o paciente tem que ter outros aspectos de sua saúde monitorados quanto aos eventos adversos cardiovasculares inerentes ao uso desses fármacos, por exemplo.

Ele ressalta que a própria bula do remédio traz suas reações adversas: “Fico com muito medo das pessoas usarem em casa sem acompanhamento, se automedicarem, não só com a hidroxicloroquina, mas também com alguns antivirais”. Para ele, é bom que a Anvisa tenha passado a controlar a venda de alguns desses remédios, e ele ressalta a importância do farmacêutico da drogaria nesse cenário, que deve explicar as reações adversas e o perigo da interação que esse medicamento pode ter com outros.

“Na internação, antes de tomar a hidroxicloroquina, o paciente deve se informado de forma clara e objetiva pelo médico sobre o medicamento, seus benefícios, riscos e alternativas e assinar um termo de consentimento informado, pois não deixa de ser ainda um medicamento em pesquisa para a COVID-19. As doses empregadas obedecem ao protocolo do Ministério da Saúde, e prazo máximo aplicado. E há outra questão: não usamos apenas hidroxicloroquina, são vários outros medicamentos na prescrição, antibióticos, corticoides, analgésicos, então tudo tem que ser monitorado e ajustado de acordo com a fisiologia e bioquímica daquele paciente em específico”, explica Jessé.

“Acredito que a maior diferença hoje não seja a hidroxicloroquina ou outro medicamento que faz, mas a conduta médica tomada com o paciente – se ele deve ser internado, se deve ir para a UTI… O cuidado multiprofissional é o que faz a diferença na estabilização do paciente”, afirma.

 

Aprendizados na nova realidade

Jessé pontua que o cenário de caos traz novas condutas e ensinamentos; ele acha que, desde o primeiro caso e óbito da doença, a conscientização geral da equipe de seu serviço sobre o uso racional de EPIs melhorou muito, bem como as medidas para evitar o contágio. “Também nas ruas, no transporte, acho que as pessoas estão mais conscientes, usando máscaras, evitando interação”, diz.

Com a COVID-19, ele também vê mais solidariedade de forma geral; “as pessoas estão preocupadas em dar força, suporte, em se ajudar, e ver a preocupação que elas têm conosco, da Saúde, ver as homenagens, os aplausos, isso tudo ajuda muito a ter mais força”.

Agora há reconhecimento no apoio psicológico oferecido aos profissionais da área, algo que, antes, era evitado. “Nós precisamos dessa ajuda, e sei que funcionários de muitos serviços tinham medo de procurar psicólogo, mas isso está mudando. Os próprios serviços têm disponibilizado o programa de apoio ao colaborador, principalmente os privados, para ajudar quem está na linha de frente nesse momento. O que todos mais relatam é medo.”

Depois de atender os pacientes, lidar com os colegas de trabalho, as famílias à espera de informações, há o mundo lá fora: “Há muita fake news rodando, e eu já não dava mais conta de trabalhar e, ao sair do hospital, lidar com as dezenas de mensagens no telefone, com dúvidas, com perguntas se aquilo era ou não verdade. Precisei sair de alguns grupos de conversa neste momento”, explica.

 

Medo e oração

E no meio de todo esse cenário, há o medo de ficar doente, de perder os colegas: “Nos assustamos com o que vira notícia e também com o que acontece próximo da gente. Todos os dias, chego em casa e preciso passar pelo ritual de se livrar da roupa, tomar banho, ter certeza de desinfetar tudo, para depois abraçar minha família”, diz.

Ele lembra que muitos colegas farmacêuticos próximos dele já adoeceram, e que o que vivemos é uma guerra; por isso, todos precisam receber o mesmo apoio, o mesmo cuidado.

Jessé se apoia na fé para ter esperança por dias melhores: “O que tem me ajudado é a questão religiosa, fé de que tudo vai passar, vai melhorar. A oração tem me ajudado muito, a mim e à minha família”.

 

Texto por Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo