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Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) padronizou uma técnica de análise capaz de detectar a presença do material genético do parasito causador da doença de Chagas em alimentos à base de açaí. O método pode contribuir para a investigação dos casos de transmissão por via oral, que atualmente representam quase 70% dos registros de infecção aguda no Brasil – forma da doença que pode ser fatal. Os resultados, obtidos a partir de uma colaboração entre pesquisadores do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz) e do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), foram publicados na revista científica Parasites and Vectors.

 

Investigação a partir de produtos disponíveis nas prateleiras

Para validar a técnica, o estudo partiu da análise de 140 amostras de alimentos à base de açaí comercializados em feiras e supermercados do Pará (entre 2010 e 2015) e do Rio de Janeiro (entre 2010 e 2012). A presença do material genético do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença de Chagas, foi detectada em 14 produtos, ou seja, 10% do total das amostras. O DNA do inseto que transmite o parasito – chamado de triatomíneo, popularmente conhecido como barbeiro – também foi identificado em uma das amostras.

Os autores destacam que a identificação do DNA do T. cruzi nos alimentos não implica, necessariamente, que havia risco de transmissão da doença, uma vez que o material genético pode ser detectado mesmo se os parasitos estiverem mortos e, portanto, incapazes de provocar infecção. De toda forma, os resultados indicam que as amostras foram contaminadas por T.cruzi presente em fezes ou fragmentos do inseto transmissor, que costuma habitar os açaizeiros. Outra alternativa seria a contaminação por dejetos de animais silvestres, que podem participar do ciclo de transmissão do protozoário. Por isso, ainda que o método identifique apenas o material genético do T. cruzi, sem apontar se o protozoário está vivo ou morto, o achado é suficiente para acender um alerta sobre a necessidade de reforço das boas práticas de higiene e manufatura dos produtos derivados do açaí.

Parte das coletas foi realizada pelos órgãos de vigilância sanitária locais, e a possível contaminação foi verificada em produtos comercializados nos dois estados. O DNA do T. cruzi foi detectado em diferentes alimentos, incluindo frutos frescos, sucos de açaí e polpas congeladas (misturadas ou não com xarope de guaraná e frutas). Os pesquisadores ressaltam que o DNA do parasito foi encontrado em itens produzidos por indústrias de alimentos, que deveriam aplicar normas rígidas para garantir a segurança dos produtos.

“Reforçamos que, como não foi avaliado o potencial de infecção dos microrganismos, é provável que eles estivessem mortos e não pudessem provocar o agravo. Mas a simples presença do DNA do parasito mostra que houve contato com o alimento, apontando para falhas no processo de produção que podem levar à transmissão da doença de Chagas”, afirma Otacílio Moreira, pesquisador do Laboratório de Biologia Molecular de Doenças Endêmicas do IOC e autor do estudo. “Apesar de existirem importantes estratégias sendo implementadas, o Brasil ainda está num estágio embrionário e pontual no combate à doença de Chagas transmitida pelo consumo alimentar, incluindo o açaí. As boas práticas de higiene e de manufatura, assim como a aproximação entre instituições de ciência e os produtores de açaí, são essenciais para contribuir na solução deste problema”, enfatiza Renata Trotta Barroso Ferreira, pesquisadora do INCQS e autora principal do trabalho. A bióloga investiga a detecção do T. cruzi em amostras de açaí desde seu doutorado, defendido no Programa de Pós-graduação em Vigilância Sanitária do INCQS.

 

Técnica promissora

Para investigar a contaminação, os pesquisadores utilizaram a técnica de PCR – sigla em inglês para reação em cadeia da polimerase. O método amplifica as sequências do material genético do patógeno, permitindo uma identificação rápida e precisa, e foi padronizado pela primeira vez para avaliar amostras de produtos comercializados à base de açaí. Os parâmetros estabelecidos durante o estudo garantiram 100% de especificidade. Isso significa que o teste foi capaz de identificar apenas o T. cruzi, sem confundir esse parasito com outros semelhantes, como o T. rangeli. Também foi observada boa sensibilidade: a técnica foi exitosa mesmo para amostras contendo um único parasito.

O desenvolvimento de métodos para a detecção do T. cruzi em alimentos está entre as ações recomendadas pela Organização Pan-americana de Saúde (Opas) e pelo Ministério da Saúde para a prevenção e o controle da transmissão oral da doença de Chagas. Segundo os autores, a técnica de PCR é muito utilizada na investigação de surtos de origem alimentar. “Atualmente não existem métodos oficiais que detectem o T. cruzi em alimentos a fim de dar uma resposta rápida para os sistemas de vigilância em saúde. Na investigação de surtos, o patógeno muitas vezes não está mais viável no momento do ensaio laboratorial, impossibilitando sua identificação por métodos que estejam baseados no seu cultivo. A estabilidade das sequências de DNA, que são pouco afetadas por condições ambientais ou de cultivo, é outra vantagem da escolha da PCR”, detalha Renata. “Muitos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen), que atuam como referência nos estados para diagnóstico e vigilância de doenças, já dominam a técnica de PCR convencional, que foi utilizada na pesquisa. No futuro, isso poderia facilitar a aplicação do método na investigação de surtos”, completa Otacílio.
Nas 14 amostras em que foi detectado o DNA do T. cruzi, os cientistas investigaram também a presença do material genético do barbeiro, vetor da doença de Chagas. O resultado positivo em um caso reforça a provável forma de contaminação dos alimentos. Uma vez que as palmeiras de açaí são um habitat natural de algumas espécies do inseto, as falhas no manuseio dos frutos podem fazer com que fezes, fragmentos ou mesmo vetores inteiros sejam moídos na preparação de bebidas ou comidas. “Nas fezes dos barbeiros infectados há muitos parasitos, mas pouco material genético dos próprios insetos. Por isso, a identificação do DNA do vetor nas amostras pode ser mais difícil, e o achado é significativo”, explica Paula Finamore, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Biologia Parasitária do IOC e uma das autoras do estudo.

Na maioria das amostras analisadas, foi possível dar um passo além da validação do método e avançar na caracterização genética dos parasitos. A contaminação mista, ou seja, por mais de uma variedade genética do T. cruzi, foi verificada em todos os casos, com maior frequência dos genótipos conhecidos com TcI, TcIII e TcV. “As infecções mistas são comuns nos vetores e nos mamíferos que atuam como reservatórios do parasito. Além disso, observamos o predomínio dos genótipos associados ao ciclo silvestre do T. cruzi”, esclarece Otacílio.

 

Doença de Chagas oral

Segundo o Ministério da Saúde, entre 2007 e 2016, o Brasil registrou, em média, 200 casos agudos de doença de Chagas por ano. Destes, 69% foram causados por transmissão oral, derivada da contaminação de bebidas e comidas. Embora casos de infecção já tenham sido ligados ao consumo de outros alimentos, o açaí é o item mais frequentemente associado a essa rota de transmissão do T. cruzi. Entre as notificações registradas de 2007 a 2016, cerca de 95% ocorreram na região Norte, com 85% no estado do Pará, onde o consumo do suco fresco de açaí é um item tradicional da cultura alimentar.

Pesquisas apontam que o aquecimento acima de 45ºC e a pasteurização são medidas eficazes para matar o T. cruzi. Por outro lado, o simples congelamento dos frutos pode não ser suficiente. Um estudo mostrou que o parasito continuava infectivo após 26 horas de contato com a polpa de açaí congelada. Para evitar a contaminação, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomenda uma série de medidas, que vão desde cuidados como retirar galhos, troncos e demais folhagens do cacho de açaí no momento da colheita até a seleção, lavagem e desinfecção dos frutos antes do preparo na etapa de processamento.

A maioria dos pacientes não apresenta sintomas na fase aguda da doença de Chagas. Quando acontecem, as manifestações mais comuns são febre por mais de sete dias, dor de cabeça, fraqueza intensa, inchaço no rosto e nas pernas. Principalmente nos casos de transmissão oral, dor de estômago, vômitos e diarreia são frequentes. Em até 5% dos casos, a infecção aguda por via oral pode levar à morte. O tratamento indicado para a forma aguda da infecção inclui medicamento específico contra o T. cruzi e, na maioria dos casos, é eficaz para curar o agravo. Entre os pacientes não tratados, um terço desenvolve a forma crônica da doença, na qual problemas cardíacos ou digestivos podem se manifestar cerca de 20 a 30 anos depois da infecção.

 

Fonte: Fiocruz